
Médicos confirmam morte cerebral de Eloá
Hermano Freitas, Portal Terra
SÃO PAULO - O secretário de Saúde de Santo André, Homero Nepomuceno Duarte, confirmou na madrugada deste domingo a morte cerebral da jovem Eloá Pimentel, 15 anos, que foi baleada na cabeça e na virilha, depois de 101 horas de cárcere privado imposto pelo ex-namorado Lindenbergue Alves, 22 anos. A morte cerebral foi declarada às 23h30 do sábado.
Choca. Atordoa. É quase inacreditável que algo assim aconteça em pleno século XXI, num momento em que as pessoas se vangloriam por todo o progresso que o homem conquistou. Balela! Estamos tão próximos à barbárie que nem nos damos conta. Afinal, uma das características é exatamente a de não se importar e não se envolver; é como se tudo isso fosse natural. E não me refiro apenas a esse caso, nem apenas aos escolhidos para exploração pela mídia sensacionalista, mas a todos esses que às vezes estão no pé de página de um jornal qualquer e que não deixam de ser tão brutais e nonsense quanto o de Eloá.
Há muita liberdade disfarçada. Os valores espalhados pregam uma liberdade individual nunca antes conquistada, um prazer em valorizarmos nossas particularidades e desejos, mas a prática mostra que o pensamento dos brasileiros ainda beira o raciocínio de séculos atrás. Esse caso me cutucou, me incomodou por todos esses dias. A questão é que ainda estamos presos a um pensamento feudal de honra, uma necessidade fremente de manter a cabeça erguida no tempo pós-amor. O tal do Lindembergue não poderia aceitar a idéia do fim. Não, nem pensar. Uma vez dele, sempre dele ou que não fosse mais. E ela não é. Apenas 15 anos e deixou de ser.
Aqui vai uma crônica de Lima Barreto escrita em 1915 (pasmem!), que diz tudo o que ficou entalado na minha garganta por esses dias.
Lima Barreto
Não as matem
Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.
O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha, veio morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.
Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.
Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.
Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.
O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.
Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.
De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa-vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?
Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.
Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.
O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido.
Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor.
Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.
Deixem as mulheres amar à vontade.
Não as matem, pelo amor de Deus!
Vida urbana, 27-l-1915